N'água e na pedra amor deixa gravados
seus hieróglifos e mensagens, suas
verdades mais secretas e mais nuas.

"Entre o ser e as coisas"
Carlos Drummond

domingo, 5 de junho de 2016

Resenha de Cinema: "Casamento de Verdade" (2015)


"Jenny's Wedding"
94'

Direção e Roteiro: 
Mary Agnes Donoghue

Elenco: 
Katherine Heigl, Linda Emond, Tom Wilkinson, 
Grace Gummer, Alexis Bledel

SINOPSE

Jenny está em um relacionamento amoroso sério com uma mulher há cinco anos, e resolve se casar. O problema é que ela vem escondendo sua homossexualidade da família por toda a sua vida. Ela terá que enfrentar o desafio e as consequências de finalmente se assumir.

RESENHA

“Casamento de Verdade” não é um filme sobre a história de amor de um casal, mas sobre a história de amor de uma mulher com sua família – especialmente seu pai e sua mãe.

| Spoilers a partir deste ponto |

Embora fale-se cada vez mais abertamente a respeito dela, a homossexualidade ainda é um tabu. O pai de Jenny diz a ela, quando ela se revela: “Não é que eu esteja vivendo no passado, não estou. Sei que os tempos mudaram. Qualquer coisa vale hoje. Eu leio os jornais, eu assisto à televisão”. Mas a televisão mostra coisas distantes (ou aparentemente distantes), e muitas pessoas não estão preparadas para quando a realidade chega mais perto. No bairro da família de Jenny, nunca houve homossexuais, ou (como afirma o pai) se houve, foram embora sem que se ficasse sabendo.

O segredo da homossexualidade de Jenny passa por vários níveis. Ela não conta para a mãe e o pai, e mente durante anos, por temer sua reação. Quando finalmente conta, os dois, por sua vez, não querem contar para os outros, por temerem o “falar pelas costas”. A princípio, parece que é apenas a mãe que quer esconder a realidade, mas mais adiante percebemos que esse também é o desejo do pai, que ele simplesmente não conseguiu expressar – talvez nem para si mesmo.

“O que as pessoas vão dizer?” é uma preocupação que tem um exemplo extremo quando envolve um tabu, mas, no fim das contas, é uma questão que todos somos levados a enfrentar. Todos queremos ser aceitos, pela família, pelos amigos, pela comunidade, e o medo da rejeição pode ser devastador para pessoas na situação de Jenny, sua mãe e seu pai. Muitas vezes, como uma espécie de mecanismo de defesa, rejeita-se o outro antes mesmo de ser rejeitado, como ilustra o caso do irmão de Jenny. Ela temia sua rejeição e se distanciou, deixando de ter a oportunidade de saber que ele seria o mais acolhedor de todos.

Ela repete esse comportamento com o pai, quando afirma que se eles não a aceitarem ela nunca mais os procurará e não sentirá sua falta – o que claramente, tendo em vista a intensidade com que a questão mexe com ela, não é verdade. Isso é confirmado ao longo de cenas seguintes, como no provador da loja de vestidos e na ocasião do aniversário do pai. Por ter passado anos reprimindo a verdade de quem ela é para a família, por temer a rejeição, e provavelmente, em algum nível, rejeitando a si mesma, ao decidir aceitar-se, o faz explosivamente e com risco de derrubar pontes preciosas.

Mas é exatamente aquilo de que sua mãe tinha medo – falarem mal dela pelas costas – o que catalisa sua aceitação definitiva da filha. Ela presencia as condenações furtivas das pessoas que tinha como amigas e não suporta ouvi-las ofender a sua filha, que é cheia de virtudes e quer apenas ser feliz em uma relação plena com a pessoa que ama. Finalmente se dá conta de que perder o amor que compartilha com a filha é muito pior do que ser rejeitada por pessoas mesquinhas.

O catalisador da aceitação, para o pai, é o seu amigo de infância, com quem trabalha desde o início de suas carreiras. Fica claro que esse amigo conhece Jenny e sabe que ela é uma boa pessoa. Aos poucos, por perceber que tudo de ruim que poderia pensar antes a respeito de homossexuais não passava de preconceito e ignorância, mudou seu ponto de vista. O ideal seria o pai de Jenny mudar o seu por si mesmo, mas estava sofrendo demais para conseguir. Aí se mostra a importância de ter amigos verdadeiros. A opinião do amigo é algo valioso, e o ajuda a se libertar da prisão em que havia se trancado. A prisão em que não existe mais amor entre pai e filha. Ou melhor dizendo: em que o amor entre os dois, que sempre existiu e sempre existirá, não flui mais, ficando estancado dentro de cada um, com todos os danos que isso pode causar.

Quanto à personagem da noiva de Jenny, senti falta de uma participação maior. Não seria para contar a história de amor das duas, mas sim a história de como o casal se integra à família de Jenny. Não há praticamente nenhum diálogo entre Kitty e a família de sua noiva. Isso é compreensível em relação ao pai, já que ele aparece apenas em cima da hora do casamento, mas creio que uma personagem como essa teria uma importância muito maior no processo de conflito e reconciliação do que o que foi exposto no filme. Mesmo os diálogos entre as duas não revelam com profundidade a intimidade e a cumplicidade que seriam de se esperar com cinco anos de relacionamento, e que certamente seriam de grande valor para Jenny no período narrado no filme. O casamento é um ritual que marca o fato de que pessoas se tornaram parte das famílias das outras, para o bem ou para o mal (ou as duas coisas). A noiva de Jenny é uma parte tão importante dessa nova família quanto a sua família original, e a integração de ambas é algo muito relevante para ser deixado de lado.

Espero que filmes como este contribuam para que esse tema deixe de ser um tabu, para que mais pessoas possam perceber que orientação sexual não tem nada a ver com caráter, e para que famílias sejam poupadas de passar por tanto sofrimento devido à cegueira do preconceito.

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