N'água e na pedra amor deixa gravados
seus hieróglifos e mensagens, suas
verdades mais secretas e mais nuas.

"Entre o ser e as coisas"
Carlos Drummond

sexta-feira, 30 de setembro de 2016

Citação: Emmanuel

"Conserva a serenidade ante as escolhas do próximo e vive a própria vida, deixando aos outros a liberdade de viver a existência que Deus lhes concedeu."

Calma
(1978)

Emmanuel

(por Francisco Cândido Xavier)

terça-feira, 30 de agosto de 2016

Citação: Carlos Drummond de Andrade


A Flor e a Náusea

Preso à minha classe e a algumas roupas,
vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias, espreitam-me.
Devo seguir até o enjoo?
Posso, sem armas, revoltar-me?

Olhos sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.

Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.

Vomitar esse tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres, mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem.

Crimes da terra, como perdoá-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.

Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.

Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.

Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.

Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.

A rosa do povo
(1945)

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

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Este é o poema, na íntegra, que foi recitado por Fernanda Montenegro e Judi Dench na cerimônia de abertura das Olimpíadas Rio 2016.

quinta-feira, 14 de julho de 2016

O ar cristalino


Sempre houve diferenças entre seus pais. As brigas ocasionais, ao longo dos dezessete anos de sua existência, o incomodavam muito. Era como se, antes de nascer, tivesse vivido em uma espécie de comunidade alternativa utópica, em que só paz e amor pudessem ter lugar.

Nos tempos recentes, o volume habitual das discussões vinha aumentando, assim como a frequência e a passionalidade. Até os xingamentos, muito espaçados anteriormente, agora se reproduziam de maneira estarrecedora.

O garoto ouvia as mesmas ofensas nas conversas da família, dos amigos e dos colegas. Eram idênticas às que se multiplicavam nas redes sociais e na mídia. Todos pareciam tomados pelo mesmo vírus, que apenas escolhia palavras diferentes para disseminar seu veneno nos organismos.

Por algum motivo, ele parecia imune à epidemia. Mas com tanta balbúrdia por todos os lados, mal encontrava brecha para se expressar. E, após testemunhar tantas disputas, imerso na onipresença de opiniões exacerbadas, tinha o que dizer. Não era muito, mas resolveu que aproveitaria todas as chances verdadeiras que se apresentassem.

Esgueirando-se pelas pessoas com quem cruzava, buscando aberturas nos ouvidos que passavam a seu alcance, foi conseguindo falar.

“Vocês querem as mesmas coisas. Querem uma vida melhor para vocês e para todos. Isso é o que importa. Talvez um esteja com a razão, talvez o outro, ou talvez os dois tenham um pouco, a seu modo. Mas enquanto se ocuparem com apontar o dedo uns para os outros, se esquecerão do essencial, que é a humanidade compartilhada por todos nós.”

Sua voz nem sempre penetrava nos ouvidos, trancados pelo lado de dentro. Às vezes entrava por um e saía por outro, sem ser registrada. Mas o vento a transportava a todos os que se abriam a ela. Em alguns, sua doçura exercia um efeito calmante. Em outros, estimulava o discernimento, apresentando uma perspectiva diferente, ou acendia uma luz de esperança. Mas sempre, de maneira misteriosa, parecia limpar o ar. Até os seus próprios ouvidos passavam a ouvir melhor, já que não era mais preciso gritar para ser entendido.

O garoto se contentava com dizer e ouvir, no humilde alcance das vozes, aceitando que mais do que isso estava além do seu controle. Ele se lembrava de Fernando Pessoa. Estava experimentando de uma nova forma as palavras dele:

“Só de ouvir passar o vento vale a pena ter nascido”.

quinta-feira, 7 de julho de 2016

Nós, nossas opiniões e o diálogo verdadeiro

Muitas vezes, confundimos nossas crenças e opiniões com nós mesmos (de maneira consciente ou inconsciente). Quando fazemos isso, ao expressar nossos pontos de vista, nos sentimos ofendidos ou irritados quando outros discordam de nós, como se o nosso valor como indivíduos (especialmente nossa inteligência) dependesse de estarmos certos ou errados a respeito de algum assunto – que, muitas vezes, envolve inúmeros fatores e perspectivas, tendo como consequência um alto grau de subjetividade. Então, ficamos sempre com os nervos à flor da pele, prestes a nos enraivecer logo que alguém diga algo diferente de nossas próprias crenças.

A diferenciação clara entre o que somos e o que pensamos é algo que pode trazer muita serenidade. Fazendo essa distinção, nos tornamos capazes de ouvir as opiniões discordantes de outras pessoas, sem a tendência de nos irritarmos com elas, já que não achamos que elas estão nos agredindo ou menosprezando nossa inteligência. Estão apenas dizendo o que pensam, tendo como base não só o raciocínio, mas também suas trajetórias de vida, experiências e temperamentos – fatores que inevitavelmente se misturam às concepções de todos nós e contribuem para formar nossa visão de mundo.

Isso não significa que devemos sempre concordar com os outros, abandonando nossas próprias crenças e opiniões. É importante pensar por si mesmo, exercendo a faculdade do discernimento e da reflexão. Porém, com a consciência de sermos imperfeitos, e, portanto, sujeitos também a crenças e opiniões equivocadas, podemos nos abrir ao que o outro diz e considerar com calma e atenção seus pontos de vista. Podemos fazer isso sem medo, pois já temos consciência de que não somos nossas opiniões, e de que somos capazes de mudá-las, caso venhamos a perceber que eram equivocadas. A disposição de mudar de ideia é um elemento da inteligência, pois somos seres em constante movimento, sempre podendo evoluir de muitas formas.


Ao mesmo tempo, dependendo do caso, se houver a percepção de alguma abertura por parte do outro, podemos, através de argumentos lógicos e embasados, tentar fazê-lo questionar-se e rever suas opiniões.

Se não somos nossas crenças e opiniões, o que somos então?

Somos seres complexos e multidimensionais, e é difícil, se não impossível, apresentar uma definição completa. Mas creio que, em grande medida, somos nossos valores e as atitudes que tomamos a partir deles.

Muitas pessoas compartilham (ou pretendem compartilhar) valores como a solidariedade, o amor, a honestidade, a busca de justiça e de sabedoria, a determinação, a fé, a compreensão, o perdão, a paz, o respeito, a vontade de melhorar sempre.

Mas talvez, neste ou naquele momento da nossa caminhada, estejamos adotando opiniões e crenças que, se pensarmos bem, não são condizentes com nossos valores.  Não somos infalíveis, nossa capacidade de raciocínio não é absoluta. E pode ser que, justamente numa conversa com outra pessoa, passemos a perceber essa distância entre nossas opiniões, nossas atitudes e nossos valores. Podemos refletir sobre o que ela diz, não para concordar imediatamente, mas para, ponderando com cuidado, clarear nossa mente e nosso pensamento. Nesse sentido, a serenidade conquistada contribui muito para fazer avaliações mais razoáveis e precisas.

E então podemos, ou mudar de opinião, ou perceber com mais fundamento e convicção que o que pensávamos era mesmo a opinião condizente com nossos valores. Dessa forma podemos, ou chegar a um consenso ou, mantendo o respeito mútuo, estabelecer uma discordância com paz, sem estarmos sujeitos a estresse, irritação, desentendimentos e desgaste emocional, pois não encaramos o diálogo como uma disputa em que, ao final, um lado vence e o outro perde. Pois, no diálogo produtivo, todos podemos ganhar. Basta lembrar sempre de nossa dignidade humana essencial, assim como a do outro.

O diálogo verdadeiro é um ideal difícil de atingir, provavelmente impossível em plenitude, mas como toda utopia, pode servir como norte e busca. Empenhar-se para ir em sua direção já é um grande bem.

sábado, 2 de julho de 2016

O ônibus e o pincel


O ponto estava vazio. Era possível ouvir o ronco dos motores dos carros solitários a uma longa distância. Uma agulha caindo no chão teria o impacto de uma bolsa cheia de pedras durante o dia. Ela rezava, olhando constantemente à sua volta, da maneira mais discreta possível.

Um vulto surgiu virando a esquina. Vinha com passos lentos em sua direção. Ela se paralisou. Espiava agora com o canto dos olhos. A batida dos pés ganhava volume e sua respiração se alterava na mesma proporção.

A poucos metros de distância, o vulto parou. Mais próximo do asfalto, tinha as costas viradas para ela. O coração ainda latejava. Minutos passavam como se fossem horas.

Um ônibus despontou ao longe, resvalando-lhe esperança. Não era o seu. O homem de costas também não deu sinal. Virou-se para o seu lado e, lentamente, sentou-se, a um metro de distância, sem olhar para ela.

Mais um ronco alto. Ela ansiava pelos números certos. Tinha a sensação de carregar uma cartela de loteria. Ganhar seria um improvável golpe de sorte. Quando o seu transporte chegou, à revelia de seus receios, ela finalmente venceu. Uma vitória com gosto amargo, beirando o insignificante em uma luta imensurável.

Aliviada, dentro do coletivo, lembrou-se da amiga de sua irmã. Resolveu, ali mesmo, mudar de ideia e aceitar seu convite. Já tinha cartolina e pincel atômico em casa, e sabia o que escrever.

quinta-feira, 30 de junho de 2016

A retomada


A colmeia invadida oscila.

As vespas, atordoadas
e febris, zunem
sob o ataque imprevisto,
enquanto o visco
amarelo e preto
se derrete sobre o chão.

As abelhas se reúnem
nos arredores, enquanto
operárias corajosas
penetram o cerne
da fortaleza, abrindo
vias para as companheiras
de cores natas e sãs.

O ar infestado vai dando lugar
ao cheiro de mel, enquanto
o barulho do ocaso
prenuncia a sonoridade
da conquistada manhã.

domingo, 5 de junho de 2016

Resenha de Cinema: "Casamento de Verdade" (2015)


"Jenny's Wedding"
94'

Direção e Roteiro: 
Mary Agnes Donoghue

Elenco: 
Katherine Heigl, Linda Emond, Tom Wilkinson, 
Grace Gummer, Alexis Bledel

SINOPSE

Jenny está em um relacionamento amoroso sério com uma mulher há cinco anos, e resolve se casar. O problema é que ela vem escondendo sua homossexualidade da família por toda a sua vida. Ela terá que enfrentar o desafio e as consequências de finalmente se assumir.

RESENHA

“Casamento de Verdade” não é um filme sobre a história de amor de um casal, mas sobre a história de amor de uma mulher com sua família – especialmente seu pai e sua mãe.

| Spoilers a partir deste ponto |

quinta-feira, 19 de maio de 2016

Resenha de Cinema: "Frances Ha" (2012)


"Frances Ha"
86'

Direção:
Noah Baumbach

Roteiro:
Noah Baumbach e Greta Gerwig

Elenco:
Greta Gerwig, Mickey Sumner, Michael Zegen

| Contém Spoilers |

sábado, 14 de maio de 2016

Resenha de Cinema: "O Grande Truque" (2006)



"The Prestige"
130'

Direção:
Christopher Nolan

Roteiro:
Jonathan Nolan, Christopher Nolan
Christopher Priest (Romance)

Elenco:
Christian Bale, Hugh Jackman,
Scarlett Johansson, Michael Caine, David Bowie

Várias pessoas se decepcionaram com O Grande Truque, por terem descoberto os truques na metade do filme. Porém, para mim, o que o ele oferece vai além da descoberta desses truques.

| Spoilers a partir deste ponto |

terça-feira, 10 de maio de 2016

Resenha de Cinema: "Françoise" (2001), de Rafael Conde

Assisti a este curta-metragem pela primeira vez na Mostra de Tiradentes, em 2002, e ele me impactou muito, com seus intensos vinte e poucos minutos. Anteontem o revi e o abalo foi o mesmo.

A riqueza psicológica da protagonista é imensa. 

| Spoilers a partir deste ponto |

sábado, 7 de maio de 2016

O reino das miopias

Neste reino incompreendido,
todos os espaços são distantes.

No chão torto que pisamos,
prisioneiro da névoa,
oscilam olhos frágeis
que erram na busca
e tudo o que encontram
são figuras de Monet.

Contentem-se, olhos desprovidos,
com a acuidade que lhes foi concedida,
guardem a humildade de suas restrições.

Aproveitem que,
no reino das miopias,
os olhos podem se tornar
mãos estendidas em dádiva,
e a dádiva é tudo o que portarão.

Olhos cerrados
arranham as pestanas
e inflamam as palmas,
escapam do erro
caindo no nada.

Deleitem-se
na visão imperfeita,
nos dedos a florescer,
nas peles que se tocam
e não se penetram.

Neste reino,
desdenhar a miopia
é ser cego no despenhadeiro.

sábado, 30 de abril de 2016

Atravessar o vazio

A beleza,
inventário das experiências,
se ergue, se curva e me bate,
como um tapa num rosto sonolento,
com a força dos recém-nascidos.

É esquivo o norte
no atalho mal iluminado
do solo da ilusão.

Com passos bambos,
na relutante vivência
da excruciante contradição,
avisto as peles que se tocam
e jamais se atravessam.

Sem poder escapar
da penosa dualidade,
elas se desviram e desdobram,
sem apoio e sem efeito,
só lhes restando consolar-se
no espaço entre duas visões.

segunda-feira, 25 de abril de 2016

sexta-feira, 18 de março de 2016

Citação: N. Sri Ram

"Deveríamos ter seriedade de propósito, e ao mesmo tempo uma atitude de serenidade relaxada e feliz."

Pensamentos para aspirantes ao caminho espiritual.

N. Sri Ram

- Capítulo XX

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A "seriedade de propósito", que (na minha interpretação), poderia ser traduzida como firmeza, assertividade e foco, teria seus objetivos prejudicados, caso o nervosismo e a irritação a acompanhassem.

Muitas vezes, agimos sob o domínio da raiva e da agitação emocional, e isso acaba dificultando a realização dos propósitos que almejamos.

A serenidade ajuda a mente a pensar melhor, a raciocinar com mais precisão, a ver com mais clareza a amplitude e a complexidade das questões, oferecendo a possibilidade de fazer análises e reflexões a partir de várias perspectivas.

É com clareza e equilíbrio que as melhores decisões são tomadas. Ter o domínio das próprias emoções permite que as ações sejam mais efetivas, pois podem ser executadas a partir de bases e argumentações mais sólidas.

O pensamento raivoso dá margem a buracos na consistência das afirmações, e leva a ações que mais destroem do que constroem, contribuindo pouco ou nada para a evolução dos indivíduos e da sociedade.

- Que possamos ser uma sociedade mais serena, equilibrada e respeitosa à diferença. Essas são qualidades que fortalecem argumentos e ações, contribuindo para o diálogo produtivo e para construir bases mais justas e eticamente harmônicas para as interações coletivas, fluindo firmemente para a melhora permanente das condições de vida de todos.

segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Citação: Eckhart Tolle

"A verdadeira riqueza é a radiante alegria do Ser e a profunda e inabalável paz que dela advém."

O poder do agora
(1997)

Eckhart Tolle
(1948- )

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A "radiante alegria do Ser" é a única sobre a qual temos total controle, pois depende de uma atitude pessoal, independente de qualquer circunstância.

Quando cultivamos essa alegria, somos mais produtivos e realizados, encontrando vitalidade no trabalho e nas relações, tendo maiores chances de alcançar tanto a riqueza proposta por Tolle, quanto a prosperidade material.

Ela pode proporcionar o vigor, a energia, a força e a coragem para dar passos para a construção de uma sociedade mais fraterna, com uma distribuição mais equilibrada de recursos e valores, na busca de bem-estar e qualidade de vida para todos.

A alegria e a paz profunda e inabalável podem ser encontradas, dentro de cada um de nós, quando conquistamos o poder de orientar as nossas próprias emoções e pensamentos, através do autodomínio e da serenidade. Exercendo esse autodomínio, elas podem ser alcançadas e estabilizadas, desde que haja prática, confiança, comprometimento e paciência.

Deve ser lembrado que vivemos em uma realidade em que o movimento é constante, o que torna a estabilidade sempre relativa. O que podemos fazer é tornar as flutuações mais suaves, adquirindo um estado de espírito habitual, firme e equilibrado.

É preciso, também, respeitar a escolha de cada um. Não há obrigação nenhuma para todos seguirem o mesmo caminho. Existem muitos caminhos, e a liberdade de se sentir e se expressar como se deseja é um direito inalienável, nos limites da ética e do respeito.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Citação: Adriana Lisboa

"E havia aquelas palavras em carne viva que Maria Inês e Clarice nunca trocavam. Seus pais lhes haviam ensinado o silêncio e o segredo. Determinadas realidades não eram dizíveis. Nem mesmo pensáveis. As coisas ali eram regidas por um mecanismo muito particular capaz de apanhar a infelicidade em seu percurso entre vísceras e artérias e fabricar-lhe uma máscara de pedra. Então Maria Inês continuava guardando aquelas palavras sangrentas e cuidando para que doessem o mínimo possível."


Sinfonia em branco
(2001)

Adriana Lisboa
(1970- )

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O perigo das palavras não ditas.

domingo, 7 de fevereiro de 2016

Movimento em pelo

Ele se evade pelos poros
e fendas dos dedos mínimas,
como o rio que se atira
e abala, em respingos alados,
o poço plácido e quieto,
irrompendo um novo curso.

Não é próprio
da fúria de sua fluência
estorvar-se nos diques
de rotas e arrefecimentos.

Nele não sobrevivem líquens,
seu fluxo é pesado
como o tempo que tudo carrega
em seu dorso nu,
capturando e devolvendo,
absorvendo e decantando.

Sua fonte é segredo do terreno,
sua única posse é o movimento.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

Presente

Ela aprende a se doar
sem correr o risco de pertencer,
pois o tempo do pertencimento passou.

Ela agora pertence a si mesma
e ao dom que experimenta e reverencia
na arcada do céu e nos cânions,
rio-via de raios infinitos.

sábado, 16 de janeiro de 2016

Citação: Ingmar Bergman

"Quarta, 3 de setembro.

O cheiro do outono enche o ar claro e parado, mas é suave e delicado. Minhas irmãs Karin e Maria vieram me ver. É maravilhoso estarmos juntas de novo, como antigamente, e eu me sinto muito melhor. Até conseguimos fazer uma caminhada juntas. Foi um acontecimento para mim, sobretudo porque não saio há tanto tempo. De repente, começamos a rir e a correr em direção ao balanço, que não víamos desde a nossa infância. Nós nos sentamos nele como três boas irmãs e Anna nos balançou, devagar e delicadamente. Todas as minhas dores se foram. As pessoas que eu mais amo em todo o mundo estavam comigo. Eu podia ouvi-las conversando ao meu redor. Podia sentir a presença dos seus corpos, o calor das suas mãos. Queria prender aquele momento fugaz e pensei:

- Haja o que houver, isto é felicidade. Não posso desejar nada melhor. Agora, por alguns minutos, posso viver a perfeição. E eu me sinto profundamente grata à minha vida, que me dá tanto."

Gritos e Sussurros
(1972)

Ingmar Bergman
(1918-2007)

segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

A esperança é uma rebeldia

Diante do quadro pouco hospitaleiro
que se desenha áspero aos nossos olhos
e nos envolve como uma crisálida opressora,
a esperança é uma rebeldia,
resistindo com força dilacerada,
e por isso não plena,
atravessada pelo cenário inclemente
da ferida universal.

Sejamos rebeldes,
com o peito furado,
avançando rumo ao fogo cruzado
com o escudo da paz,
alvejando fraternidade e
desafiando, com gestos de afeto,
a desolação que se quer vencedora.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

Citação: Marguerite Yourcenar

"A sabedoria, como a vida, pareceu-me feita de pequenos progressos contínuos, de recomeços e de paciência."

Alexis ou o tratado do vão combate
(1929)

Marguerite Yourcenar
(1903-1987)

- Tradução de Martha Calderaro

terça-feira, 5 de janeiro de 2016

Citação: Rainer Maria Rilke


By Sven Hoppe - www.camera-colonia.de

"As coisas estão longe de ser todas tão tangíveis e dizíveis quanto se nos pretenderia fazer crer; a maior parte dos acontecimentos é inexprimível e ocorre num espaço em que nenhuma palavra nunca pisou."

Cartas a um jovem poeta
(1903)

Rainer Maria Rilke
(1875-1926)

- Tradução de Paulo Rónai

segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

Citação: Emmanuel

"Não te detenhas, pois, nas amargas recordações que te guardam o pensamento nos trilhos escuros de ontem, de vez que, chamado às tarefas do bem, podes atender-lhe de mil modos, marchando das sombras de agora para a redentora luz de amanhã."

Vida e Caminho

Emmanuel

(por Francisco Cândido Xavier)