N'água e na pedra amor deixa gravados
seus hieróglifos e mensagens, suas
verdades mais secretas e mais nuas.

"Entre o ser e as coisas"
Carlos Drummond

domingo, 18 de maio de 2014

Perséfone, rainha do Hades

Bela Perséfone, a mais bela das belas, flutuando no ensolarado jardim de narcisos, seu perfume embriaga meus sentidos; não posso senão possuí-lá, descê-la em seu frescor à minha obscura morada; será ali o novo lar dos seus encantos.


Linda e solar, venho arrebatar-te, Perséfone, como você me arrebatou; vamos em minha carruagem de fogo negro, pois já te esperam, rainha, em minha morada; não tardemos, que o pranto ofuscante da terra se aproxima.

 
Sim, bela Perséfone, sua mãe te procura, e não tardará a vê-la; aconchegue-se, por agora, sob o meu rubro firmamento, e receba este fruto, pois aqui, também, se conhece a fartura; morda a sua macia carne, saboreie o tenro agridoce de sua polpa lauta e suculenta.

Faço como me pedes, pois a doçura dos teus olhos negros acaricia-me com a leveza de um estremecimento; surpreendeste-me, num habilidoso movimento, deixando-me, temporariamente, sem escolha; agora, voluntariamente, regozijo-me neste sublime alimento, abrigada no sombreado escarlate de teu afetuoso acolhimento.

 
Não posso voltar, mãe amada, apoderei-me da paixão e encontrei meu novo lar, tornando-me rainha de um obscuro solo; acolherei com minhas suaves asas os viajantes do falecimento, trépidos ou bravos, encaminhando as almas ao destino de seus méritos; a delicadeza da primavera não é já para mim, tenho missão mais sóbria; as lágrimas e anseios dos perdidos serão as sementes de minha lavoura agora.

Querida mãe, o pranto da distância entre nós tornou-se um transbordante poço de anseios; as águas de meu desejo inundaram nossos domínios, pondo em risco a ordem e os passos de suas sombras peregrinas; só me restou, malgrado as súplicas de meu marido amado, estabelecer com ele um doloroso pacto; aqui serei rainha, nem sempre presente, todavia; uma vez ao ano irromperei, como uma fonte cristalina, portando a luz do amor e da saudade, para derramar contigo, sobre a terra, em claras estações, o suave calor de nosso afeto acumulado; em alegria, com todos os seres que respiram, compartilharemos nossa doçura, premiando o labor dos homens bravos e o desvelo das mulheres fecundas.

domingo, 11 de maio de 2014

Clara dos anjos

Clara de alma, mãe minha, mergulhada sempre nas águas da compaixão, abençoada e ungida nos gestos e movimentos do cuidado e do afeto, na pureza alegre dos olhos gentis, plena de amor e aspirações de fraternidade divina, muitas vezes num sacrifício que, por sua nobreza, ao invés de oprimir, acrescenta ao seu manancial de paz derramada; às vezes com arranhões na pele frágil de tão sensível, que eu possa ser uma fonte de bálsamo em momentos delicados, e que os anjos e os santos que você tanto ama te sejam companheiros inseparáveis, iluminando, guiando e fortalecendo, para que se realize constantemente a sua doação, a sua riqueza fluindo, a sua felicidade conquistada.

quarta-feira, 7 de maio de 2014

Audácia

Desgarrado por um momento de suas velhas ambições, ele se abre ao vagaroso florescer de um outro norte; como um propulsor, a afetuosidade instigando o brio latente de uma gema brotando em pássaro na hora exata, primeiro canto se derramando macio sobre a fauna ardente de tantas chagas; ele assume diante de si a tarefa inglória da singularidade almejando contiguidade sem arranhões, desenganado mas renitente, vulnerável a desprezos sustenta a estranha marca de seu rosto na enorme antessala; o solo firme da resolução transmuda seus olhos, firmados em cada pormenor com delicadeza de unguento, a discernir a hora de mirar ou descansar a alma nua de um irmanado qualquer; ele planta as sementes de uma árvore frondosa e ancestral oferecendo sombra aos que se aproximam, pequeno recesso em que galhos e raízes circulam a seiva até os limites de cada espontânea envoltura; é um panorama de cores a sonoridade plástica de seus fugidios pensamentos, penetrando, em ondas de infância cultivada em oitavas, os poros de cinza a dormitar na assombrada face dos que anelam.