N'água e na pedra amor deixa gravados
seus hieróglifos e mensagens, suas
verdades mais secretas e mais nuas.

"Entre o ser e as coisas"
Carlos Drummond

sábado, 17 de março de 2012

Desprovimento

Indistinto, aprisionado no formato de sua própria concepção, espreguiça os braços, apalpando com as costas da mão os tijolos de sua cela autogerada.

Seu corpo cresce ferozmente e põe abaixo o invólucro que limitava seus movimentos. Ignorante de tempo e lugar, desconhecido de si mesmo e de todas as possibilidades que carrega o arbítrio inerente, assusta-se com um globo terrestre de delimitações marcadas na mesa da sala de estudos.

Num ensaio de retorno à condição diferenciada, voltam-lhe à mente as fotografias em preto e branco que repousavam na escrivaninha do tio-avô. Pouco a pouco suas lembranças se colorem e se expandem num vórtice de imagens nítidas e desconexas. A delicadeza do filme não resiste aos raios de sol refletidos pelo vidro do relógio, e décadas se consomem num incêndio sem propósito.

Ou seria este o esquecer, debruando as paredes da memória com fitas brancas, pintando as pedras brutas com a alvura das origens, condensando em um único pensamento o desenrolar de todos os novelos e de todas as tramas, compondo num só tom e numa só frase todos os andamentos?

Deparada a interrogação, aponta para cada coisa auferindo-lhe o nome, que parece sempre limpo, tenro e luminoso na recente descoberta, e assim reúne ditoso o vocabulário de tudo o que existe abaixo do céu azul.

Mas seu espanto maior se reserva para os olhos do homem que porta a essência de todos os perfumes, trazendo a chave mestra que lhe permite trafegar despercebido pelo labirinto dos corpos, impunemente tocando os espíritos com sua flauta arrebatada. Ele mira aqueles olhos cândidos e enrugados apenas por um instante, numa visão fugaz que se desmancha em travessões e reticências exclamadas.

Subitamente, no íntimo da própria vacuidade, abarca a plenitude do efêmero incessante, esperando de pé sob a chuva que fustiga docemente os seus cabelos. Tudo o que possui neste momento ímpar são potências, palavras e mãos vazias ao relento, consagradas agora ao improviso em um palco sem cortinas, sem holofotes e sem direção.

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