N'água e na pedra amor deixa gravados
seus hieróglifos e mensagens, suas
verdades mais secretas e mais nuas.

"Entre o ser e as coisas"
Carlos Drummond

sábado, 31 de março de 2012

Nossa compreensão não a pôde alcançar

Ela sorria e cantava feito criança,
saltando sobre abismos como quem dança,
desmanchando carrancas por onde passava,
flutuando em luz como nuvem preclara.

Mas de tristezas funestas ela padecia,
de onde vinham, repentinas, ninguém sabia,
como chegavam se iam, sem ser questionadas,
mágoas furtivas deixando invisíveis pegadas.

Pendendo eternamente num fio sem terra,
travando consigo uma perpétua guerra,
admirava, encantada, as aves de rapina,
seus voos resgatavam, nela, uma menina.

As brincadeiras redundavam todas tristes,
não surtiam mais efeito os velhos chistes,
sentia rasgar-lhe o duro e ríspido chão,
ferindo-lhe a vista o cinza baço do verão.

Atravessava todos os dias uma bela ponte,
indo ao trabalho, lhe deslumbrava o horizonte,
metros abaixo contemplava o rio imenso,
como se para mergulho ele fosse propenso.

Numa madrugada por nós nunca esquecida,
despiu-se de roupas e de sonhos, destemida,
lançando-se às águas escuras, convicta e serena,
assinando o próprio funeral, sozinha, nua e plena.

terça-feira, 27 de março de 2012

vossa excelência é um canalha

como deve ser bom
dizer a verdade

abrir a boca
sem pensar
nos ouvidos
que podem estar escondidos

em canetas
nos cantos da sala
atrás dos óculos escuros
por dentro das saias

eu bem queria
olhar para as câmeras
embocar os microfones
contar tudo
o que ando fazendo

dar um bom-dia sincero
aos nobres salafrários
que sentam ao meu lado
nas raras vezes
em que vou ao trabalho

há noites em que sonho
que sou preso
com outros metralhas
jogado em cela especial
com direito a tribunal
a circo nacional
e a delação premiada

sinto até um alívio
e acordo com nostalgia

anteontem
me flagrei desatento
tremi e gelei
mas depois relaxei

eu dizia a verdade
mas era só em pensamento

quinta-feira, 22 de março de 2012

Os olhos do menino

Não pingue colírio
nos olhos do menino,
mas deixe-o ver,
em ardência encarnada,
o mundo em sua fúria,
obscura e escancarada.

Reze ao deus
que alguns matam
e outros ressuscitam,
ou se cale,
ou apenas maldiga.

Talvez ele fique cego,
ou tenha catarata,
mas mesmo que
não mais enxergue,
dará testemunho exato
dos gritos vermelhos,
dos precipícios negros,
dos cochichos claros.

Carregará nos ouvidos
as cantigas azuis,
e nos lábios calosos,
a dura responsabilidade
da elaboração precária
de uma letra sem melodia,
crua, dolorosa e sábia.

Não pingue colírio
nos olhos do menino,
mas mostre
o silêncio da aurora,
as ondas
do mar encrespado,
a espuma
batendo na areia.

Leve-o,
bem agasalhado,
à montanha
do observatório,
e lhe ensine
o vasto universo,
perene e ilimitado.

Sente-o
perto da fogueira,
e deixe o calor,
como a um filho,
abraçá-lo.

Encene o concerto
do drama humano,
heróis lutando
contra tiranos,
e dos livros do tempo
vire-lhe as páginas.

Dê a ele
a beleza do mundo,
e seu colírio
serão as suas lágrimas.

sábado, 17 de março de 2012

Desprovimento

Indistinto, aprisionado no formato de sua própria concepção, espreguiça os braços, apalpando com as costas da mão os tijolos de sua cela autogerada.

Seu corpo cresce ferozmente e põe abaixo o invólucro que limitava seus movimentos. Ignorante de tempo e lugar, desconhecido de si mesmo e de todas as possibilidades que carrega o arbítrio inerente, assusta-se com um globo terrestre de delimitações marcadas na mesa da sala de estudos.

Num ensaio de retorno à condição diferenciada, voltam-lhe à mente as fotografias em preto e branco que repousavam na escrivaninha do tio-avô. Pouco a pouco suas lembranças se colorem e se expandem num vórtice de imagens nítidas e desconexas. A delicadeza do filme não resiste aos raios de sol refletidos pelo vidro do relógio, e décadas se consomem num incêndio sem propósito.

Ou seria este o esquecer, debruando as paredes da memória com fitas brancas, pintando as pedras brutas com a alvura das origens, condensando em um único pensamento o desenrolar de todos os novelos e de todas as tramas, compondo num só tom e numa só frase todos os andamentos?

Deparada a interrogação, aponta para cada coisa auferindo-lhe o nome, que parece sempre limpo, tenro e luminoso na recente descoberta, e assim reúne ditoso o vocabulário de tudo o que existe abaixo do céu azul.

Mas seu espanto maior se reserva para os olhos do homem que porta a essência de todos os perfumes, trazendo a chave mestra que lhe permite trafegar despercebido pelo labirinto dos corpos, impunemente tocando os espíritos com sua flauta arrebatada. Ele mira aqueles olhos cândidos e enrugados apenas por um instante, numa visão fugaz que se desmancha em travessões e reticências exclamadas.

Subitamente, no íntimo da própria vacuidade, abarca a plenitude do efêmero incessante, esperando de pé sob a chuva que fustiga docemente os seus cabelos. Tudo o que possui neste momento ímpar são potências, palavras e mãos vazias ao relento, consagradas agora ao improviso em um palco sem cortinas, sem holofotes e sem direção.

segunda-feira, 12 de março de 2012

Planta

A arquiteta revolve planos
rabiscando informes desenhos
a partir do esboço dos seus sonhos.

Inquieta ao saboreio de tangentes,
reza a um deus em que não crê,
tateando certezas num braille tosco
que não consegue compreender.

Enfurnada nos cobertores de junho,
vê pela janela um sem-teto febril.

Lembra-se num estalo de uma sopa
tão quente quanto chama de fogueira
que a antiga sogra preparava
e distribuía em ruas quase ermas.

Subitamente visualiza os findos traços
e as planilhas na sua mesa,
rasga papel como combustível
do fogo de uma panela inteira.

Recolhe água, bate feijão, corta legumes
em pedaços que bem justos caibam
na concavidade da colher segura.

Desce as escadas, agasalhada,
ligeiramente tresloucada,
compartilhando com um estranho arisco
um pouco de frio e um jantar,
modesto, silencioso e ao fim gentil.

Adentra a papelaria vinte e quatro horas
e se mune de novos instrumentos,
recompondo em corpo vivo e alma insone
a pujança dos seus sonhos primitivos.

quinta-feira, 8 de março de 2012

Vou-me embora pro Chifre da África

Meu filho fez anos ontem. Ele me contou o seu pedido ao apagar as pequenas chamas, embora eu alegasse que não deveria. “Eu desejei que você volte feliz”.

Eu havia dito que só voltaria feliz se deixasse todas as crianças bem nutridas. Não era para ele ter ouvido, ele que é da idade da inocência, de um lugar e circunstância que a preservam, ele que precisou me perguntar o que é bem nutrido e se espantou que alguém pudesse não ser.

Depois de me revelar seu desejo, me deu um sorriso, que guardei como a peça mais preciosa da minha bagagem.

segunda-feira, 5 de março de 2012

Asas do poeta

a Curt Bois

Vulcanizadas emoções.
Sente pra mim?
Preguiça de lavas, de ebulições.

Frieza de letras, espaços e sinais.
O que acontece, quando gelo e magma se encontram?

Caretas ela faz raivosa ao espelho, falsetes ressonados pelo vidro insolente, arquitetura de olhares revolvidos na ilusão.

Inumeráveis urdiduras, costurando crimes e recortes de jornal, pé ante pé, na rua, em movimentos hábeis e nervosos, exemplar de violência urbana a qualquer momento eclodindo.

Enquanto bombas explodem no Oriente Médio, mulher lixa as unhas descansando o esmalte no braço da poltrona, com a televisão a prometer beleza, liberdade e o impossível.

Um casal de desconhecidos geme através das paredes, a cama improvisada range, orquestrando vorazmente os fluidos liberados, que se desdobram mais tarde em vitupérios recíprocos.

Soldados queimam livros, estúpidos, ardendo identidades, atirando álcool em fornalhas de redomas inflamáveis. Os fiéis se juntam ao coro dos incendiários, agora confundidos, unidos na ignorância e nas razões sequestradas.

Na península itálica, ecos ancestrais pregam a fraternidade entre os povos, reivindicando o monopólio da sexualidade, em meio a nódoas odiosas e clamores dissonantes. Nos subúrbios brasileiros, pastores carregam máquinas de leitura para cartões de crédito desgarrados.

Navios clandestinos mancham de vermelho os oceanos, plataformas expelem viscosidades negras na imensidão, envolvendo a vida que perece sem defesa, pagando tributo à ambição demente.

Acampados, defrontando monumentos erigidos à cobiça, bradando na praça a sacudir a estrutura vil, coberta da ferrugem da tirania, revestindo-se com o emblema do inconformismo deliberado, gritam os incompreendidos a sede recôndita e inesquecida.

Não eram as horas do repouso, infravermelhas em sua fatigada inexistência, eram horas de tensão, amores ultravioletas, exigentes e difíceis, sobrecargas em nossos débeis corações. As horas, descoloridas e caóticas, dançam seus ventos aleatórios, ar, frio, calor e umidade, valsa de dores, palavras e desentendimentos.

O poeta canta. É um velho subindo escadas de bilblioteca, procurando no muro o café em que todos eram gentis. Sua voz é pausada e entoa, cristalina, cada sílaba áspera, cada fonema luminoso. Não lhe preocupam as rugas, não lhe atormenta o tempo atroz, ele é leveza e ternura a recitar a epopeia de um mundo sem paz.

Quero ser, em seu reconhecimento, pisando com a sola todos os chãos, incorporando a esperança triste de seus passos, num salto aloprado e improvável, o alegre desbravador, o guardião do assombro primordial, o primeiro poeta vivo a narrar a paz.