N'água e na pedra amor deixa gravados
seus hieróglifos e mensagens, suas
verdades mais secretas e mais nuas.

"Entre o ser e as coisas"
Carlos Drummond

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

A bancarrota

Ele pensava. Olhava em volta, frêmitos no peito, a janela sugestiva sob o céu desabando em fúria. A duas portas, o elevador o esperava glacial. Numa mesinha, um maço, abandonado, de cigarros finos. Há anos havia parado, temendo o coração. Apossou-se deles, afinal, agora, morrer do coração seria um bálsamo. Dirigiu-se com passos pesados à sala de café, onde apanhou uma caixinha de fósforos. A primeira tragada em tanto tempo quase o fez tossir. Sua mente esvaziou-se diante do ato de fumar, como se tudo tivesse subitamente se reduzido a uma sala pouco ventilada, em que um alquebrado debilmente retomava um vício. Um ritual esquecido. Nada como a simplicidade de inalar a fumaça, segurá-la no pulmão, e devolvê-la ao ambiente, engendrando uma sutil excitação, uma falaz liberdade, um agressivo e insensato desdém. Apagou a guimba numa xícara, atirou longe o resto do maço, e desceu. O que tinha a dizer era pouco. Precisava apenas sustentar o olhar, diante das luzes ofuscantes, dos rostos indignados e dos microfones, que regurgitariam, numa náusea pungente, toda a estupidez que ali o conduzira.

Um comentário:

Gelly A. disse...

Que precisão nas palavras a deste texto! E a descrição da sublime relação com o cigarro, esse mártir... muito bom!