N'água e na pedra amor deixa gravados
seus hieróglifos e mensagens, suas
verdades mais secretas e mais nuas.

"Entre o ser e as coisas"
Carlos Drummond

sábado, 22 de janeiro de 2011

Cuba libre!

A noite era fresca e convidativa. Eu e meus homens, incumbidos de transformar o ano-novo dos imperialistas em poeira, fazíamos cerco à residência oficial do embaixador, um idiota arrogante que não via o tapete escorregando sob os pés. A meia-noite se aproximava e o clima era tenso. Tínhamos que pisar na ponta dos dedos, para flagrar desprevenidos centenas de anglófilos, que sucumbiriam ante a potência de nosso arsenal sanguinário. O pio do cuco soou. Pelo norte, pelo sul, pelo leste e pelo oeste, demos marcha à invasão, sincrônicos. À medida que nos aproximávamos, a música aumentava, e mal podíamos ouvir nossos próprios pensamentos. Mas eles eram claros. Ninguém sairia dali. Ninguém que respirasse.

Entramos desabalados, nossos urros se equiparando às notas do gramofone. Exploramos as salas, penetramos os quartos, conferimos os banheiros, checamos as sacadas. Luzes acesas, nenhuma sombra humana.

– Vazia, comandante!

Com um sinal liberei a horda. Lustres, mesinhas, cadeiras, poltronas, quadros, esculturas, pratos, copos – nada escapou à carnificina. Eu e três subordinados imediatos nos dirigimos à cozinha, cacos de vidro estalando sob os pés. Uma grande porta de madeira escondia uma despensa. Ordenei silêncio. Armas em punho, preparados para uma emboscada, abrimos a porta. Dezenas. Dúzias. Centenas de garrafas da bebida imperialista repousavam inertes no chão de lajota, sob um armário com inúmeras taças.

Um frenesi tomou conta dos comandados. Partiram ávidos, largando a artilharia para apoderarem-se, sádicos, dos vidros e cristais.

– Não!

Eu tinha uma ideia melhor.

– Mande José e Manolo à cidade.

O resto dos homens chegou aonde estávamos. Seu ardor era tal que foi difícil segurá-los.

– Feche esta porta!

A casa, cansada, não apresentava mais nada a ser quebrado. Os homens, entediados, não compreendiam minha atitude. Por que ser condescendente com os imperialistas, perguntavam. Começavam a duvidar de minha lealdade à causa revolucionária. Mas logo Manolo e José voltaram. Traziam litros e litros de nossa aguardente libertada. Havana, tomada, embriagada, comemorava com tiros a derrota dos miseráveis.

Levei todos ao salão.

– Manolo, traga a bebida imperialista! José, distribua nossa aguardente!

Dispostas na enorme mesa, taças e mais taças, que estariam na boca dos imperialistas, foram enchidas com a gaseificada poção negra. Os homens, brandindo suas garrafas, interrogavam-se, perplexos, na expectativa.

– Hoje, neste antro reacionário, viemos acabar com a besta peçonhenta, com os parasitas do norte! E o que encontramos? Nada! Covardes, decepcionaram cada um de nós, que queríamos ver seu sangue jorrando de seus pescoços, suas tripas saltando de suas entranhas! Mas que eles saibam que, o que deixam para trás, nunca mais será o mesmo! Eu os convido, companheiros, a deixar a marca de nossa Ilha em tudo o que antes veio manchá-la! É o que eu vou fazer, agora e para sempre!

Derramando o destilado nas taças, ergui um cristal assoberbado. O grito, coletivo, soou na madrugada de janeiro, acompanhado por tiros, urros e um gosto novo, totalmente novo, de doce vitória.

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