N'água e na pedra amor deixa gravados
seus hieróglifos e mensagens, suas
verdades mais secretas e mais nuas.

"Entre o ser e as coisas"
Carlos Drummond

domingo, 30 de novembro de 2008

O péssimo e o maravilhoso

O maravilhoso
Nada era maravilhoso na vida de A.C. Ele tinha abandonado qualquer esperança e mesmo desejo de que algo desse gênero aparecesse em sua vida. Certa vez, foi promovido no trabalho. Na mesma semana, uma ex que lhe tinha dado um fora quis reatar o namoro. Além disso, passou na seleção do doutorado e foi agraciado com uma viagem aos Tigres Asiáticos, sorteado numa promoção de shopping center. Inabalável em sua resolução, não comemorou, não deu um sorriso a mais do que o habitual e não tratou melhor os colegas – nem mesmo amigos e familiares. Todos lhe vinham dar os parabéns, felizes, mas nada além de um seco “obrigado” conseguiam tirar dele. Entrou no doutorado. Voltou com a ex. Empossou-se no novo cargo. Viajou. Uma semana depois de regressar, mirando-se no espelho, identificou suas primeiras rugas. Nada era maravilhoso na vida de A.C.

O péssimo
Nada era péssimo na vida de C.A. Certa vez, foi descoberto por um agente de modelos. Antes da primeira sessão de fotos, seu barraco pegou fogo. Queimado no rosto, adquiriu uma marca permanente da tragédia, dando adeus, ao mesmo tempo, à nova carreira e à noiva, com quem se casaria em menos de um mês. Sem-teto, sem dinheiro e sem perspectivas, resolveu-se a vender balas chita nos sinais de trânsito. Sempre sorrindo, arrancava moedas de motoristas por sua jovialidade e bom humor. Até que foi atropelado por um adolescente bêbado. Novamente no hospital, perdeu todo o movimento das pernas. Ao ter alta, ganhou de presente de uma médica uma cadeira de rodas novinha em folha. Nada era péssimo na vida de C.A.

sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Gargarejos e escafandros

A música? Só me toca no pessoal. Não tenho ouvido de músico, não sei afinar violão, quando canto, gargarejo. Mas tem umas no varejo que tive por receber, e no atacado me inteiro, se não me apossuo. Daí que numa dessas trombadas corteses me regalaram, era um Chico, já ouviu falar? Nadei com escafandros pelas memórias de milênios, encontrei lugares, me acredite, cidades inteiras, e não pude escapar. O amor me fisgou pela entranha, veja bem, durava mil anos! Então a moçoila teve o que não queria. Impactada com o vigor dos séculos, ouviu o lamento doce que a viola e o batuque alegre ampliavam como um alento. O que aconteceu? Não tenho nada a provar. O nome continua batendo.

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Bater gravado

Não, elas não significam nada. São bonitas, só isso. Mas, então, beleza não significa nada, dizia astuto em trânsito enquanto degustava os olhos da moçoila. Elas são místicas por natureza, um misticismo do corpo, da carne rasgada, da implantação do permanente no esqueleto do inconstante. Não se faz tudo isso pela dor, nem pela superfície. Cravar nas costas a beleza não é de superfície, não senhora, já mostravam os índios. Aliás, que maneira de chamar dúzias de povos distintos, não, minha cara? Os habitantes primevos da sudamérica entendiam de magia, uniam o céu pleno de segredos à terra sedenta de sentido. É isso o que elas significam, madame. Ah, o lugar em que estão também conta, sim, bem lembrado. Eu, aliás, me gabo de ter algumas numa parte um tanto delicada e inatingível. Quê? Haha, não! É ainda mais forte que isso, me acredite. Aliás, tem quem duvide, mas te afirmo de pés jurados, é a mais cristalina verdade. Foi na juventude, mas o que diziam não aconteceu. Não, não me arrependo de nada. Sempre tive orgulho delas. Conheci um cirurgião que se tornou bem chegado. A gente ia ao jogo só pra imitar os torcedores, zoando. Depois ouvíamos música. Numa noite chuvosa apareci à porta dele e pedi. Um nome no coração, vamos lá que daqui a pouco amanhece! Estranhou, mas cedeu. Nos entendíamos bem, sabe como é. Quem vê a cicatriz acha que foi transplante. Então, me pedem cópias de radiografias e ressonâncias que nem fiz, pode isso? Te confesso que desde então ele não bate igual. Duvida? Não tenho nada a provar. Quem tem que saber, sabe.

terça-feira, 4 de novembro de 2008

O manejo

O passado o atormentava. Dono de uma memória de fazer inveja a Giordano Bruno e Julien Sorel, seu problema era tão grave que freqüentemente sofria desmaios, no vórtice de um surto de recordações. Sua mente tinha uma terrível inclinação a absorver todos os acontecimentos, de tal maneira que só restavam os maus.

Seu primeiro relacionamento foi um desastre. Não conseguia se livrar da impressão pouco motivadora que herdou do relacionamento turbulento dos tios. Sempre que as coisas ficavam boas, um evento desfavorável do passado surgia sussurrando em seus ouvidos, semeando desconfiança, ao final malogrando qualquer vislumbre de convivência íntima entre os amantes. Os seguintes foram ainda piores. A recordação do primeiro estragou o segundo, que por sua vez juntou-se àquele para acabar com o terceiro.

Numa sucessão desgovernada de fracassos, o memoriado terminou cansando. Pensou em acabar com tudo, mas não conseguia se decidir entre as inúmeras e nada animadoras opções no menu dos suicidas. No meio desse dilema, o telefone tocou. A prima recomendou-lhe um psiquiatra.

Adiou então a escolha, aliviado, pois fazer escolhas sempre o estressava. O médico o recebeu. Engatando lembranças novas a cada três frases, o paciente tinha dificuldade de manter a coesão de seu discurso. Adepto da associação livre, o outro ouvia.

Algumas semanas depois, o nosso herói estava à beira do colapso. As lembranças odiosas já se acumulavam naquela sala onde cuspia suas frustrações. O analista então sentenciou: “você precisa reaprender a manejar a peneira”. O atormentado homem saiu do prédio, foi andando e sem perceber chegou numa praça. Ao seu lado, um bar. Pediu uma loura.

Lembrou do riso da primeira namorada. Das frases articuladas da segunda. A terceira aparecia deslumbrante e nua. Depois do terceiro copo, buscou um número no celular. Estava lá. Apertou o botão. Já sabia o que fazer.