N'água e na pedra amor deixa gravados
seus hieróglifos e mensagens, suas
verdades mais secretas e mais nuas.

"Entre o ser e as coisas"
Carlos Drummond

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Desconfiança

A noite era fria e convidativa. Os bares do Anchieta enchiam-se de bêbados potenciais e vagabundos de ocasião, devidamente encapotados em grossos agasalhos. Rafaela, em seu habitat, pacientemente suportava as cantadas dissimuladas na fala de um desconhecido. Mas era bonito. Que olhos, que boca, que pescoço, que punhos.

Próximos dali, Almeida e Renato mascavam uma dupla de gostosas louras. Fisgavam-nas pelos olhos. Pareciam irradiar-se, penetrando pela visão o dentro delas. “Tá rolando uma festa muito doida numa casa no Santo Antônio”, Renato já foi logo convidando.

Saíram todos no carro de Almeida, com exceção de Rafaela, indo de carona com o pretendente. O destino era o mesmo, era o que importava. A casa era imensa. Nenhum dos convidados lembrava dela, embora freqüentassem o bairro de longa data. Entraram por um portão estreito, que dava para uma garagem de quatro vagas, duas delas já ocupadas.

Desceram, e estranhavam não ouvir nenhum som partindo da casa, embora as luzes estivessem acesas. Entraram. “Vamos subir”, disse Almeida apontando a escada. Chegaram num quarto imenso, com muitos espelhos, incenso, crucifixos e uma cama enorme.

“Sejam bem-vindos à festa”, disse Rafaela enquanto Renato colocava um metal gótico. Os anfitriões então agarraram seus pares. Cada convidado, um mais fascinado que o outro, deixava-se conduzir pelo virtuosismo lúbrico do parceiro.

Horas de orgia e revezamento se passaram. Quem era hetero virou gay, quem era gay virou hetero, todos eram bissexuais, ao menos por aquela madrugada. O relógio indicava a aproximação do alvorecer, quando Cristha, Aldonn e Elirium, sedentos, com gestos lentos sobre os corpos inebriados, expuseram seus afiados caninos, roçando os pescoços antes de furar a pele num jorrar de sangue orgásmico.

Saciados, e apressados pela hora, mutilaram os cadáveres, revestiram-nos com formol e guardaram no armário. Não havia tempo para o serviço completo. Dirigiram-se a outro quarto, mais isolado, com tijolos no que foi um dia uma janela. Acomodaram-se em seus caixões e adormeceram instantaneamente.

Mas a rotina do triângulo não era tão descomplicada quanto poderia parecer por esse relato. A mudança para Belo Horizonte ia fazer vinte e quatro anos, e a casa já estava desgastada. O pacto de transparência no uso da magia já não era cumprido entre eles há quase um século. Ninguém sabia exatamente se estava sendo vítima do outro, tão mesclados já estavam astralmente. Os feitiços acumulados se misturavam àqueles de clãs rivais, criando uma confusão indecifrável.

Na noite seguinte, Cristha se encontrou com uma amiga. Conheciam-se há nove anos. Luísa estava especialmente estonteante. Ria sedutoramente, olhava desafiante, quase tão hipnótica agora quanto a amiga. Após muito uísque, dirigiram-se à casa da mortal. À meia luz, pela primeira vez Cristha roubou-lhe um beijo. Transaram. Deitadas, Luísa exausta, Cristha ajoelhou-se. “Quer ser imortal?” A amante olhou-a sorrindo e pensando estar entrando numa brincadeira maliciosa. “Quero”. A veia saliente do pescoço de Luísa oferecia-se suculentamente. Sentiu os cortantes caninos de Cristha penetrando fundo, num misto de dor lancinante e prazer sem igual, enquanto seu coração vibrava prestes a explodir. Oferecendo o pulso mordido a ela, Cristha ordenou: “beba”. Como um recém-nascido sugando um seio pela primeira vez, Luísa obedeceu, enquanto as batidas de seu coração só aumentavam em volume e força, num crescendo que terminou numa agonia extática. Subitamente, seu coração parou de bater, deixando-a inconsciente. Um momento depois, acordou. Seus olhos não viam como antes. Sua face não era a mesma. Tudo aparecia com mais detalhe e riqueza. Nascia Nadhiva.

Dormiram. Poucos dias depois, Aldonn e Elirium discutiam. A ausência de Cristha preocupava-os. Aldonn, desconfiado, queria livrar-se dela, o que, na verdade, já era plano seu antes de Belo Horizonte. Seu poder superior, advindo da idade de cinco séculos, a tornava quase invulnerável. Sozinhos, não resistiriam, e o que estava se desenhando tinha toda a cara de confronto definitivo.

Elirium era mais moderado. Conhecia Cristha há mais tempo, e hesitava em tomá-la como uma ameaça. Pois esta era a lei: nunca matar os da sua espécie. “Duvido”, dizia Aldonn, “que em quinhentos e vinte anos ela nunca matou nenhum”. Elirium calou-se. Sabia que havia sido bem mais de um, das mais inusitadas e torturantes maneiras.

Cristha voltou a freqüentar a casa normalmente. O silêncio reinava. A imortal estava um dia escrevendo, quando chegaram os dois companheiros. “Quer ir à Serra do Curral?”, indagou Aldonn. Chegando lá, acenderam uma fogueira e se assentaram em círculo, soltando frases a esmo. Cristha e Elirium se entendiam muito bem, conseqüência de ser ela sua mãe na escuridão. Um olhar bastava para comunicarem as informações de um livro inteiro.

Entediado, Aldonn foi explorar a serra. Elirium alimentava a fogueira, placidamente. Um corvo sobrevôou o fogo. Aldonn empunhava uma estaca de ferro. Ouviu a ave, espantou-se por avistar um corvo nessa cidade pela primeira vez. Voando em círculos, foi deixando Aldonn atordoado. Resolveu este, por fim, retornar à fogueira. Elirium já estaria imobilizando Cristha. Pôs-se a andar passos rápidos, sempre acompanhado do corvo. Este, de repente, sumiu, o que fez Aldonn parar. Alguns segundos se passaram, retomou o seu caminho. Mas então dezenas, centenas de corvos apareceram, todos fazendo razantes em torno de Aldonn. Uma ave majestosa e colossal apareceu diante do jovem vampiro de um século e meio. Não era um corvo. No momento mesmo em que Aldonn descobriu o que era, foi totalmente incinerado. Suas cinzas resistiriam àquele fogo. Mas não ao sol que já clareava levemente o negro da noite.

Os gravetos acabaram. Elirium, estirado na grama, foi vendo as estrelas desvanecerem. Cristha, deitada de lado, quis saber: “O que você acha do Rio de Janeiro?”

domingo, 12 de outubro de 2008

Vista

Madrugada vazia de sons
Plena de segredos
Calados sobre a fileira de perdizes

Deslocados arrepios
Deslizando mãos calosas
Acarinhando as coxas
Donzela gozante

Sussurros contorcidos cortando
A vacuidade da noite
Som de veludo e vermelho ferindo
A seminudez velada

Vista da cidade
Brilhos e sonhos
Adormecidos no ladrar dos cães
Nos trinados soturnos das corujas

Uma noite de amor
Livre num capô
Dengosa como tantas

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Estrofes de um Dia Pálido

1
Ofuscante espiral despudorada
De luminares pendentes soterrados
Face fugaz de sóis tremeluzentes
Ópticos no azul cegante ensurdecente
Juvenil enroscado nas paredes
Deslumbradas em off na cena silenciosa
De filme das dez

2
No limiar de uma noite sugestiva
Ela quebra as dores de um dia antepassado
Restam madrugadas
Bêbadas de risos plangentes

3
Mal-estar de dedos cicatrizados
No pára-brisa encardido de gritos
Fulminantes
Rios de cachos de uvas passadas
À beira da estrada

4
As horas escorrem como chuvas
Esparramadas na trincheira da manhã
Um cheiro de sol e sorriso
Colado nos mecanismos secretos de um dia findo

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

A Psique de um Mestre


Há exatos 15 anos, Michael Jordan anunciou sua aposentadoria. Bem, sua primeira aposentadoria – apenas a terceira foi definitiva.

O que faz esse abandono das quadras ser tão estranho é a circunstância em que veio. Jordan em seu auge, aos 30 anos, acabando de ganhar seu terceiro título consecutivo com o Chicago Bulls. Tudo indicava que ele ganharia ainda vários outros títulos. Na época, poucos acreditavam que alguém iria destronar “his airness” e seus companheiros.

Isso já dá uma dica para entendermos o primeiro motivo de sua desistência. Jordan, segundo pessoas próximas, um ano antes já mostrava sinais de enfado. Pra que continuar jogando, se eu já sei que vou ganhar tudo? MJ precisava de desafios, e não os enxergava mais no basquete.

Mas há um outro motivo, provavelmente mais decisivo.

No dia 23 de julho de 1993, James Jordan, pai de Michael, voltava do enterro de um ex-colega de fábrica, nas estradas da Carolina do Norte. Ao invés de parar em um hotel para descansar, James fez como sempre fazia: encostou o carro e dormiu ali mesmo. Uma coisa que fizera por toda a vida, despreocupadamente, dessa vez seria fatal. Dois garotos de 18 anos resolveram assaltá-lo, e acabaram fazendo mais do que isso. Com um tiro no peito, roubaram a vida daquele senhor desacordado. Saíram com o carro e jogaram James Jordan num rio – seu corpo só foi encontrado uma semana e meia depois. Ao longo desse tempo ele teria feito 57 anos.

Michael Jordan era muito próximo do seu pai. Dizem que a caligrafia de um era tão parecida com a do outro, que era difícil distinguir qual era qual. A marca registrada (bem, uma delas) de “Air” Jordan, colocar a língua para fora, no meio de uma jogada importante, foi herdada do pai. Este não perdeu um jogo do filho, quando atuava pela Universidade North Carolina. É ele à esquerda, junto de MJ, no seu primeiro título.

O que o gênio das quadras disse ao se retirar foi mesmo relacionado ao primeiro motivo: “eu não tenho mais nada a provar”.

Porém, o que ele fez depois disso aponta para o segundo. O sonho de James Jordan era que o filho fosse jogador da Liga Maior de Baseball. Então, lá vai o “pequeno” Michael... jogar baseball, ora. Porém, não exatamente como o pai queria – evidentemente, MJ não tinha formação como jogador desse esporte, e acaba indo parar na Liga Menor. Mas isso não importa. Ele estava lá, profissional de baseball, como o pai queria. Sabe-se lá se na fantasia de Michael não sobrava espaço para sonhar com a Liga Maior.


Enquanto isso, a mídia vai acompanhando, incrédula, assim como os fãs. Não tenho como saber isso com certeza, mas acredito que esse desvio de curso na carreira de um grande do esporte é sem precedentes, e não aconteceu de novo, ainda.

Bem, se MJ não tinha mais nada a provar no basquete, não conseguiu provar nada no baseball, a não ser que não era atleta desse esporte.

O seu Chicago Bulls, na primeira temporada sem Jordan, fez uma boa campanha, mas acabou eliminado pelo New York Knicks na semifinal do Leste. No ano seguinte, porém, metade do campeonato se passou e eles lutavam para permanecer na briga para alcançar os mata-matas.

Foi então que, no dia 18 de março de 1995, o rei decidiu ser bondoso com seus súditos órfãos e divulgou uma nota para a imprensa, concisa à exaustão, mas dizendo muito: “I’m back” (“estou de volta”).

O que se seguiu, no primeiro jogo de sua volta, foi a maior audiência da história num jogo de temporada regular. Vestindo o número 45, depois que o 23 tradicional fora imortalizado pelo Bulls, daí a dez dias ele iria ao Madison Square Garden para fazer 55 pontos em cima do NY Knicks.

O Chicago se recuperou e foi aos playoffs. Na semifinal do Leste, contra o Orlando Magic, um ala deste time fez o que não devia. Cutucou a fera. Após o Bulls ser derrotado no primeiro jogo, com um erro de Jordan, Nick Anderson afirmou: “o 45 não é igual ao 23”. Resultado? No jogo seguinte, MJ aparece vestindo o 23. Porém, isso não foi o suficiente, apesar de sua média de 31 pontos. O Orlando venceu a série e avançou.

Agora Michael Jordan já tinha o que provar. Será que o “novo” era inferior ao “velho”?

Para dar continuidade a essa história, digo só isto. No campeonato seguinte (1995-96) o Chicago bateu o recorde de vitórias em uma temporada (72 contra 10 derrotas), foi o campeão e Jordan foi escolhido o melhor jogador do All-Star Game, da temporada regular e das finais, sendo o segundo jogador a conseguir isso na história da NBA. O jogo do título foi no dia dos pais dos americanos, e MJ chorou ao segurar o troféu, assim como havia feito no primeiro título, ao lado do pai, cinco anos antes.

E agora? Ele tinha mais alguma coisa a provar? De qualquer maneira, continuou até 1998, ganhando seu terceiro título consecutivo e sexto na carreira. Aos 35 anos, ainda com muito gás, pára de novo. Aos 38, retorna, dessa vez ao Washington Wizards, time que não chega a lugar nenhum. Com 40 anos, faz 43 pontos em um dos jogos.

Michael Jordan é considerado pela maioria dos fãs e entendidos como o maior jogador de basquete da história. É também um dos que têm a trajetória mais inusual dentro do esporte. Alternando entre a paixão e o tédio, tendo o amor ao desafio como constante, mesmo no momento em que manifesta um alto grau de amor filial, MJ inscreve seu nome na história dentro e fora das quadras. Todo gênio é excêntrico? Sei lá. O fato é que esse cara é mais um entre os imortais.

sábado, 4 de outubro de 2008

A Marca de Heston


Hoje o ator americano Charlton Heston completaria 85 anos. Morreu neste ano, em abril.

Mas não vou dizer nada sobre ele. Não vou dizer que era um fd... conservador (embora menos quando mais jovem), que era propagandista das indústrias de armas e que fez uma participação memorável em um popular seriado dos anos 90.


Vou falar dos filmes clássicos que ele fez. Dois deles, para ser mais exato. O primeiro, "A Marca da Maldade", de Orson Welles, lançado em 1958; o segundo, "Ben-Hur", de William Wyler, no ano seguinte. Pertencendo a gêneros diferentes – filme noir e épico bíblico, respectivamente –, nem por isso deixam de se encontrar em um ponto: Heston é o herói de ambos os filmes, em que sofre injustiças que precisa reparar.


Mas o que mais salta aos olhos são realmente as diferenças, começando pelo status comercial que obtiveram. Enquanto a super-produção épica custou valores altíssimos para a época, numa aposta bem-sucedida da MGM para salvar-se da bancarrota, o noir, preto-e-branco como mandava a tradição, quase nem saiu, e quando saiu, foi um filme B, lançado secundariamente em relação a um filme A de que nunca ouvimos falar.

A tentativa de Orson Welles voltar a Hollywood, depois de passar um tempo fazendo filmes de orçamento baixo, não foi bem-sucedida. A Universal não acreditava no sucesso dessa obra que se tornou clássica, das mais significativas da história do cinema. Chegou mesmo a cortar cenas e a contratar um segundo diretor para filmar outras. Apenas 40 anos mais tarde seria lançada a cópia que busca fidelidade aos planos originais de Welles, embora no meio tempo tivesse sido lançada ainda outra versão.

Heston ficou sabendo que Welles estaria no filme como ator, e exigiu que fosse este também o diretor, o que já dá uma idéia da diferença de poder que os dois possuíam na indústria cinematográfica americana.

O ator interpreta um mexicano (Tim Burton tirou vantagem disso, ao colocar Orson Welles em “Ed Wood”, desabafando, reclamando desse fato) que está com a noiva americana numa cidadezinha na fronteira com o México. O plano-seqüência inicial, de mais de três minutos, mostra a movimentação da divisa e um homem plantando uma bomba num carro, que explode em seguida.

Aí aparece o detetive Quinlan, magistralmente interpretado por Welles. Talvez esta seja a figura mais característica do filme noir. É um personagem ambígüo. Suas convicções são éticas à sua própria vista. Fez uma carreira em plantar evidências em casas de supostos criminosos, sem que ninguém soubesse. Alega, ao fim do filme, que todos eram “culpados, culpados”. Não é um vilão unidimensional.

“Ben-Hur”, por outro lado, é comparativamente menos matizado. Judah Ben-Hur (Heston), um judeu, tem um romano, Messala, como amigo de infância. Quando este retorna de um longo período de separação, a princípio se felicitam. Mas Messala vai à Judéia para exercer poder, e quando Judah discorda de suas políticas, o legionário aproveita-se de um acidente para culpar o ex-amigo.

Preso, torna-se escravo e vai remar numa galera. Passa por toda uma epopéia, no meio da qual recebe água de Jesus, quando seu capataz o impedia de beber. O Cristo intimida o romano com sua simples presença.


Recebe a oportunidade de participar de uma corrida de bigas, correndo contra Messala. A cena dura mais de dez minutos, e é belíssima.

Ao final, testemunha o calvário de Cristo. Reconhece o homem que lhe deu água, e tenta fazer o mesmo. Porém, é impedido. Sua mãe e sua irmã, que estavam leprosas, são milagrosamente curadas.

Às vezes dá aquela tentação de classificar um como gênio incompreendido e o outro como medíocre bem-sucedido. Mas o fato é que Heston não atua mal, a bem da verdade.

Welles, muito mais apreciado pela crítica do que pelo público, nunca se consolidou como cineasta hollywoodiano. Seus filmes tinham orçamentos baixos e pequena bilheteria. Porém, é colocado entre os imortais do cinema.

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

E por falar em imortais...



Eis que, no mesmo dia em que morreu Francisco, nasceu Hippolyte Léon Denizard Rivail, mais conhecido hoje como Allan Kardec. Exatos 578 anos se passaram entre a “desencarnação” de um e a “encarnação” do outro.

Coloco esses termos entre aspas, pois fazem parte do jargão espírita, sendo a diferença mais conhecida entre o espiritismo e a maioria das igrejas cristãs esta: a existência ou inexistência da reencarnação.


Minha posição particular sobre essa questão mudou de curso algumas vezes ao longo da minha vida. A princípio, criança e filho de católicos praticantes, acreditava sem muita ênfase na imortalidade da alma e, que me lembre, nem questionava se havia ressurreição ou reencarnação.


Lá para os 16, 17 anos, descobri o Budismo, e logo abracei a idéia da reencarnação. Passei uns tempos freqüentando uma escola de raiz esotérica, onde todos comungavam essa crença. Mais tarde, abandonei-a. Tornei-me agnóstico. Recentemente voltei ao espiritualismo e à reencarnação.

Não me arrependo de nenhuma dessas fases. Cada uma foi importante, ao seu modo, para o meu crescimento.

Não acredito que a crença ou descrença em algo como reencarnação, ressurreição ou aniquilamento total seja um fator a determinar a boa ou má ventura de uma pessoa. O que conta são os atos e a maneira de lidar com suas conseqüências.

Tampouco alguém provará definitivamente a veracidade de cada uma das hipóteses.

Porém, o que me fascina mais do que as outras possibilidades é mesmo a multiplicidade das vidas. Sem nenhuma base científica para tal crença, abraço-a por essa fascinação. É muito sedutora a idéia de que somos espiritualmente imortais, de que estivemos aqui antes e de que podemos voltar depois, para melhorar.

Conheço, de Kardec, o “Evangelho segundo o Espiritismo” e “O Livro dos Espíritos”, ambas leituras muito apreciadas. Basicamente, Kardec (ou os espíritos que supostamente ditam o livro) reafirma o cristianismo, mantendo e renovando o seu preceito de “amar ao próximo” e dando uma visão nova dos fatos da história de Cristo, baseada na existência dos espíritos e da multiplicidade das vidas, nos vários mundos que povoam o Universo. Recomendo àqueles que gostam de temas espirituais.

O nosso aniversariante faz hoje 204 anos.

Francisco: um outro aniversário


Eis aqui uma confirmação do que eu disse no post anterior: até mesmo a data de morte desses caras é lembrada, embora talvez não com a mesma intensidade. Mas, no caso da figura contemplada neste texto, não há certeza sobre sua data de nascimento, o que torna o outro “aniversário” mais significativo. Hoje, então, completam-se exatos 782 anos que o sujeito em questão “morreu” (lembrando que estamos aderindo à tese de que certos caras não morrem).

O bebê Giovanni di Bernardone nasce em 1181 ou 1182, em Assis, na Itália. O pai não gosta do nome escolhido pela mãe (em homenagem a São João), enquanto ele estava no exterior, então muda-o para Francesco, supostamente por sua simpatia pela França, país com o qual mantém relações comerciais. Francisco torna-se conhecido então como o “pequeno francês”.

Na infância, ouvindo falar de Francisco de Assis, primeiramente descobrimos que é um santo, já que geralmente se referem a ele como “São” Francisco. Dizem-nos que gostava de animais (até conversava com eles) e da natureza (chamava o Sol e a Lua de irmãos). Contam que era rico e abandonou tudo para viver uma vida simples e sem posses.

Trata-se de um dos santos mais admirados por não-católicos, talvez pelo desprendimento que contrasta com as Igrejas douradas e suntuosas, que freqüentemente vêm à mente quando se critica essa igreja de 1600 anos, além da imagem de suavidade, que contrasta com as perseguições e as fogueiras, feridas que ficaram marcadas na história. É interessante notar que um comunista ateu projetou a Igreja de São Francisco, aqui em Belo Horizonte.


Há uma coisa em caras como Francisco que me provoca, ao mesmo tempo, admiração e espanto: a difusão e sobrevivência de suas obras e pensamentos.

Começando na provincial Assis, filho de um abastado comerciante, vive uma vida mundana. É trovador, e almeja escrever poesias em francês. Mas, ao mesmo tempo em que leva uma vida de luxo, é acometido por crises existenciais.

Tem uma visão de um esplêndido palácio, cheio de armas e onde havia uma belíssima mulher. Resolve possuir essas coisas, e se alista no exército. Porém, enquanto viaja para combater, é feito prisioneiro. Adoece. Tem uma nova visão, em que Deus o exorta a voltar para casa e viver espiritualmente.

Já na terra natal, certo dia, depara-se com um mendigo. A experiência é tão intensa que ele lhe dá tudo o que carrega nos bolsos. Seus amigos o escarnecem e o pai o censura veementemente.

Mais tarde, encontra um leproso e beija-lhe as mãos, apesar de sua repugnância, dando-lhe as moedas que carregava consigo. O leproso, em seguida, some misteriosamente.

Em outra visão, o ícone de Cristo crucificado, de uma igreja em que Francisco rezava, toma vida e diz: “Francisco, não vês que a minha casa está em ruínas? Restaura-a para mim”. Vende então o seu cavalo e o tecido do seu pai, com o fim de restaurar a igreja em que estava. É castigado pelo pai por isso, inclusive fisicamente.

Depois de ouvir um sermão baseado no Evangelho de Mateus, em que Cristo diz que seus discípulos devem proclamar o Reino dos Céus, sem levar dinheiro, nem cajado ou mesmo sapatos, o futuro santo esposa uma vida de pobreza.

Numa entrevista com o bispo, Francisco renuncia à riqueza paterna, abandonando até as roupas que possuía. Vai viver como mendicante, e mesmo assim consegue restaurar outras igrejas, angariando doações de abonados.

Em pouco tempo atrai seguidores. Vai a Roma com os onze primeiros e se encontra com o Papa, que dá à sua ordem um apoio informal. Alguns anos mais tarde, quando o grupo já é mais numeroso, surge oficialmente a Ordem dos Franciscanos, a “Ordem dos Frades Menores”. Inicialmente ela se difunde na Itália, e depois grupos são enviados à França, Alemanha, Hungria, Espanha e o Oriente.

No final da vida, tem uma visão da Exaltação do Cristo. Um anjo de seis asas, crucificado, teria-lhe aparecido, o que supostamente faz aparecerem as chagas de Cristo (“Stigmata”) em seu corpo.

Sofrendo com essas dores e com uma doença de vista, morre no dia 3 de outubro de 1226, após ter ditado seu testamento espiritual.

Hoje, a religião não é tão parte da vida das pessoas como já foi, ou como já pareceu que era. Os frades franciscanos não são um grupo numericamente expressivo, mas estão aí, assim como os ensinamentos e preceitos de Francisco.

É curioso como coincidiram o nascimento de um grande com a morte de outro, sendo ambos notabilizados pela espiritualidade e mansidão.


Não acredito que todos precisamos ser tão abnegados quanto esses dois personagens. Além do mais, isso seria impossível nas condições atuais. Mas é estimulante refletir sobre como é, sim, possível viver em paz, ainda que se tenha que lutar para alcançá-la e mantê-la, ou se dar conta, ao menos, de que a própria luta é mais importante do que o resultado.

Estão aí os pacifistas, estão aí os ativistas que protestam sem armas. Embora sejam muitas vezes escorraçados violentamente, presos ou mesmo ameaçados de morte pelos poderes constituídos, não abandonam a luta.

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Gandhi faz aniversário


Eu estava pensando em dizer, “estaria fazendo aniversário”, mas daí lembrei que Mohandas Karamchand Gandhi é um desses grandes da humanidade, que nunca morrem. Não é à toa que esses caras têm sua data de nascimento prestigiada por encontros, congressos, manifestações e outras formas de reverência.

O cara em questão faz hoje 139 anos, embora apenas 78 deles tenham sido passados “vivos”, no sentido tradicional da palavra.

Será que Gandhi está mesmo vivo? Como está a Índia que ele liderou à libertação do jugo britânico? Onde está o princípio da não-violência?

Em primeiro lugar, a Índia se dividiu, ao contrário da vontade dele, e desse cisma surgiu o Paquistão. Mas será que essas nações irmãs iriam conviver em paz? Por enquanto, o que se vê são as duas se armando a nível atômico, desconfiadas da vizinhança.

Pobreza, miséria e excesso de gente afligem a Índia. Mesmo com crescimento econômico, as condições de vida da maior parte da população permanecem precárias.


A primeira vez em que assisti ao filme que fizeram tendo como base a sua vida, achei chatíssimo e, se não me engano, dormi. Mas eu devia ter uns 9, 10 anos, pegando carona numa fita que a minha irmã tinha alugado. Mais tarde, assistindo de novo e descobrindo sua importância nas aulas de história, fiquei fascinado com a figura da “grande alma” (Mahatma).

Usando manobras simples e inteligentes, levou os indianos a fazerem suas próprias roupas, adquirir o seu próprio sal e sentir que não precisavam dos ingleses e não os teriam mais mandando ali – tudo isso sem pegar em armas.

A Índia é o mundo para caras como Gandhi. O que se vê, hoje, é bem diferente de seus ideais. Guerras, terrorismo, “guerras ao terrorismo”, criminalidade, muitos tipos de violência a mão armada.


Para remediar isso, acredito que ele diria: “paciência e trabalho”. Aí estão as iniciativas coletivas, as ongs, as fundações, se empenhando por concretizar ideais de paz e fraternidade, algumas sendo brutalmente reprimidas pelos poderes instituídos, como ongs da área de ecologia ou direitos humanos. Embora muitas dessas organizações sejam de fachada e marcadas pela corrupção, outras tantas são sérias e produzem um trabalho efetivo.

Gandhi não viu o mundo que queria. Eu sei que também vou morrer sem ter visto o mundo que eu quero. Mas acredito na humanidade. É uma longa vida, a nossa. E mal começou.